de Maria Brás Ferreira • Moderação de Tomé Quadros
Ver cinema compreende uma tomada de posição do espectador (de que o realizador é o primeiro exemplo). Prende-se, com efeito, com uma certa disposição no espaço e no tempo. A imagem no ecrã e a experiência que do filme o espectador faz, são responsáveis por uma nova arquitectura: um novo dentro e fora, a formação de uma fronteira ténue que, enquanto objecto artístico, carecente de um exterior e de um outro que o signifiquem - por reconhecimento e deformação daquilo que numa primeira instância reconhece -, tende a uma confluência multidireccional dos territórios, impedindo a definição absoluta dos seus limites.
Já é antiga a identificação do cinema e, mais concretamente, da experiência de ver um filme, com a experiência onírica do sonho. Ver um filme será, com efeito, equiparável a sonhar acordado? Ou não comportará a visualização de um filme, por outro lado, um certo adormecimento, a activação de um estado sonâmbulo, advindo de um encantamento, possibilitador da aceitação do diferente, do improvável e do inverosímil? Ora, a melancolia - curiosamente aproximada, por Michel Foucault, ao sonho, a partir de uma coincidência etimológica - define, antes de mais, uma patologia associada a uma determinada forma de estar, isto é, a uma certa disposição do sujeito. Além da vertente clínica e sintomatizada do conceito, a melancolia - mais enquanto forma de estar do que forma de ser - é análoga à vertigem a que a experiência da arte está potencialmente associada, por via de uma indistinção entre sujeito e objecto, pela confusão entre interior e exterior, situando-se o sentido do filme numa zona de contaminação, sem geografia exacta. Ao tomarmos as imagens no ecrã por objectos a serem vistos e analisados, estamos igualmente a fazer de nós (espectadores) parte integrante de um jogo cinematográfico, assim configurado num desdobramento reflexivo, em mise en abyme, nos termos do qual o espectador concentra as funções de sujeito e objecto, agente e peça de um jogo maior, inapreensível na sua totalidade. A melancolia, responsável pela separação contígua entre sujeito melancólico e realidade constitutiva, instaura um contínuo entre sujeito e espaço, e este como ecrã em cuja superfície paradoxalmente o primeiro cai: sujeito que vê o real como sendo outro, experienciando um estado de dissociação, ao mesmo tempo que integra o real como ecrã a ver.
Trata-se de uma forma de presença (a presença melancólica) eminentemente projectiva, de que o cinema é correlato, na condição de projecções sucessivas de imagens entre tempos, multiplamente reformuladas, possuídas e geradas pelo olhar do espectador. Na arte, a queda melancólica para a profundidade virtual de uma superfície pode concorrer, contrariamente ao que sucede com os doentes melancólicos propriamente ditos, para a sugestão de um sentido. Pensaremos, com efeito, no cinema como arte melancólica: da imagem melancólica ao espectador melancólico.
Mestre em Estudos Portugueses, com a tese “Modos de Cindir para Continuar: uma leitura de A Noite e o Riso e Estação, de Nuno Bragança”, pela Universidade Nova de Lisboa, onde se encontra a tirar o doutoramento, preparando uma tese sobre Agustina Bessa-Luís e Manoel de Oliveira, a partir do conceito de melancolia. Bolseira FCT, participou em antologias, tendo publicações, de poesia e ensaio, em revistas nacionais e internacionais. Publicou dois livros de poesia: Hidrogénio (ed. Flan de Tal, 2020) e Rasura (ed. Fresca, 2021). É co-editora da revista Lote. Faz crítica de arte na Umbigo Magazine. Faz crítica literária em diversos locais, tais como na Colóquio-Letras e no Observador.
Tomé Quadros, doutor em Ciência e Tecnologia das Artes, especialização em Cinema e Audiovisuais, pela Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, com a avaliação final de summa cum laude com 19 valores, é Diretor Pedagógico, Presidente do Conselho Pedagógico e membro do Conselho Científico na Escola Superior de Artes e Design - ESAD (Matosinhos, Portugal). É Professor Adjunto na Escola Superior de Artes e Design - ESAD (Matosinhos, Portugal) e membro integrado no Centro de Investigação em Artes e Design - ESAD-IDEA (Matosinhos, Portugal). É docente convidado nos programas de licenciatura em Artes Plásticas e Tecnologias Artísticas na Escola Superior de Educação do Politécnico de Viana do Castelo, e de mestrado da Faculdade das Artes e Humanidades na Universidade de São José na Região Administrativa Especial de Macau - República Popular da China. Desde o corrente ano de 2024, Tomé Quadros é membro da Comissão de Avaliação na Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES, Portugal), na qualidade de perito nacional em investigação e prática artística. É coordenador participante no âmbito da iniciativa Portugal Entre Patrimónios, desde 2018, organizado pelo Museu Nacional de Arte Contemporânea (MNAC, Lisboa - Portugal), em parceria com a ESAD-IDEA (Matosinhos - Portugal). Do trabalho académico que tem vindo a ser desenvolvido, destacam-se as apresentações na Alemanha, China, Japão e Portugal. Das publicações académicas: Social transformation in the eyes of contemporary Chinese cinema and Dogme 95 capítulo publicado no livro (Inter)cultural Dialogue Through Arts and Media pela Senses Publishers (ISBN: 978- 94-6300-421-3); editor do livro Image in the Post-Millenium - Mediation, Process and Critical Tension (ISBN 978-94-93148-60-4) ESAD-IDEA e Onomatopee Publisher. Ao longo da última década, Tomé Quadros esteve envolvido na realização e produção, artística e projetual. De salientar, os filmes realizados em 2016 e 2006 Macau Reframe e Nam Van Square presentes respectivamente na Bi-City Biennale de Urbanismo e Arquitectura, Shenzhen, República Popular da China, e na 10ª Mostra Internacional de Arquitectura da Bienal de Veneza, Itália. Assim como, Mosaico, um desenho coletivo (2022) coordenação e participação em representação da esad-idea no âmbito do 8º encontro do projeto nacional/ Projeto Portugal entre Patrimónios (23 novembro, Museu Nacional de Arte Contemporânea - MNAC, Lisboa); e In between this and something else (2021) exposição do artista Nuno Cera, Galeria da Biodiversidade - Reitoria da Universidade do Porto, coordenação Magda Seifert e Tomé Quadros, produção ESAD-IDEA (Matosinhos - Portugal).